Arquitetura e MercadoGestão pública

Mercado ou Estado? Melhor os dois

Um rápido olhar sobre as duas fotos acima nos leva a crer que esses edifícios estariam em bairros diferentes e distantes, o primeiro mais afluente e o segundo numa região periférica. 

Na verdade, esses dois prédios são adjacentes e estão localizados em Griffintown, bairro vibrante e historicamente industrial de Montréal, que passa por uma transformação para se tornar uma área repleta de lofts e condomínios modernos, galerias de arte, restaurantes e espaços verdes, que atrai uma população rica da cidade. 

A primeira edificação resultou de uma incorporação pura de mercado e é comercializada a preços correntes. Nada de novo ali; a construção chama atenção pela imponência da entrada e pela presença de uma academia no mezzanino. 

A segunda é produto de ação público-privada, em terras federais, e foi vendida a preços subsidiados com deságios que variaram de 20 a 50 por cento dos preços de mercado. Duas instituições foram centrais na estruturação desse segundo empreendimento: de um lado, a Société Immobilière du Canada (SIC), empresa pública federal detentora da área e, de outro, a Bâtir son Quartier, empresa social sem fins de lucro, sediada no bairro, que atuou na modelagem urbana e econômica do projeto. 

O convívio, na mesma quadra, desses dois empreendimentos – um “de mercado” e outro “social” – é importante? Não teria sido melhor e mais eficiente a SIC simplesmente vender a terra e deixar o mercado cuidar do resto? Dito de outra forma, qual teria sido o melhor encaminhamento a ser dado ao terreno público: deixar as forças de mercado escolherem os produtos e o público ao qual eles seriam destinados? Ou efetivamente terá sido melhor mesmo direcionar o imóvel a faixas de renda menos favorecidas, de modo a induzir a construção de um bairro mais diverso, no plano socioeconômico?

Uma corrente dominante no mundo da economia e do urbanismo, de linhagem libertária, defende a ideia de que as cidades devem estar sempre livres da interferência de governos. Nessa visão de mundo, bens públicos devem ser privatizados. A intervenção sobre mercados e as tentativas de planejamento, seguem os ultraliberais, prejudicam a eficiência e a capacidade de adaptação das cidades, e acabam por limitar a livre iniciativa e o crescimento econômico. A presença do governo – nessa linha de pensamento – cria mais problemas do que resolve, impõe restrições que desencorajam a inovação e o desenvolvimento urbano natural baseado nas preferências e necessidades reais dos habitantes e, pior de tudo, favorece a corrupção. 

Se você conhece a história urbana de São Paulo, é impossível deixar de reconhecer a força do argumento desses liberalistas libertários. Nossa regulação é complexa; frequentemente gera interpretações contraditórias. Seus dispositivos muitas vezes não são autoaplicáveis e passíveis de judicialização. Executivo e Legislativo sucumbem a pressões de grupos de interesse. Leis são formuladas sem o devido debate público, privilegiando interesses particularistas ao arrepio do interesse público geral. A propriedade pública é mal gerida, quando não é largada às traças. 

O libertário tem razão (ao menos em parte) ao advogar em favor do Estado mínimo e a privatização. O descaso com o interesse público no plano municipal é parte central da revolta tão intensa nos dias de hoje contra as democracias, que insufla os movimentos iliberais. Não escapa à percepção de qualquer observador da política que o capital captura o Estado de diversas formas: corrompe a política e políticos, influencia o desenho de políticas, obtém para si vantagens concentradas e distribui perdas difusas em massa. O terror encarnado. E nessa perspectiva, libertários assumem que o capital é (e deve seguir) “indomável” e defendem que o Estado e qualquer tentativa de planejamento e regulação devam ser desmontados.

Por outro lado, séculos de história urbana mostram também que o livre mercado gera uma forte segregação socioespacial. Numa economia de mercado, o capitalismo tende a concentrar riqueza e o capital tende a ser alocado a áreas já desenvolvidas. A população mais vulnerável é empurrada para as periferias, longe dos centros urbanos bem servidos de infraestrutura e das oportunidades de trabalho, estudo, cultura e lazer. O mercado nesse sentido apresenta falhas, ao colocar em marcha mecanismos sistêmicos de exclusão territorial, geradores de desequilíbrios sociais e também ambientais. 

Voltemos para Griffintown. O bairro é ainda hoje um grande canteiro de obras, capítulo de sua transição de zona industrial para bairro dos mais cobiçados da cidade. A porção da orla do Canal Lachine, mais desejável pela proximidade com a água, está praticamente completa, com condomínios de alto e médio padrão. Nesse contexto, não é necessário ser um gênio da lâmpada para adivinhar que essa região, se deixada livremente às forças de mercado, seria tomada por produtos imobiliários de padrão alto, voltados para as classes média e alta. Seria este o melhor resultado? 

A resposta coletiva de Montréal refutou a perspetiva pura de mercado. Atenta às transformações estruturais em curso no bairro, que testemunhou uma queda nas atividades industriais e o esvaziamento de fábricas, armazéns e habitações operárias a partir dos anos 1960, a Bâtir son Quartier e a SIC estabeleceram diálogo para que a área de propriedade federal, que até 2002 abrigou um centro de triagem do Postes Canada (os correios canadenses), fosse transformada no empreendimento da segunda foto – um projeto voltado para faixas inferiores de renda. Aparentemente, reconheceu-se tanto os riscos do excesso de intervenção quanto as falhas do mercado desregulado. Uma abordagem equilibrada, que combinou a escuta democrática, a eficiência e inovação propiciadas pelo mercado e a infraestrutura fornecidas pelo Estado.

Volto à questão central deste texto: foi correta a decisão? Muito provavelmente, sim. Ainda que, sob olhar econômico ortodoxo, pode ter havido uma alocação ineficiente de recursos, as falhas de mercado que a opção liberal implicaria (mais exclusão, ausência de diversidade socioeconômica, mais deslocamentos e consequente impacto ambiental) mais do que justificam a alternativa adotada. O terreno de 92.000 m2 hoje abriga mais de 417 unidades sociais da Coopérative des Bassins du Havre, que executou até agora 3 fases do empreendimento, e o Parque Bassin-à-Gravier, parte do projeto de revitalização da área, que visa proporcionar espaços verdes e de convívio para a comunidade. 

Mas o motivo principal, ou, o experimento mais importante, pelo qual o empreendimento se justifica tem a ver com a tentativa de construir espaços de renda mista, que induzam a tolerância e convívio entre pessoas diferentes. Parece ser este o desígnio dos edifícios da Coopérative des Bassins du Havre. É cedo ainda para dizer se vai dar certo, mas num momento histórico em que as divisões no mundo, de todas as naturezas, étnicas, econômicas, culturais, se aprofundam, parece justo que devemos todos tentar fazer diferente. Os conflitos se agravam e, quando radicalizados, geram zonas de guerra. É nas cidades onde temos a chance de construir espaços de convívio entre pessoas diferentes. 

O empreendimento serve de exemplo para a Secretaria do Patrimônio da União – SPU, entidade do governo federal que, como a Société Immobilière du Canada (SIC), detém um enorme portfólio de imóveis públicos de grande potencial. O processo em Griffintown também mostra de forma exemplar o papel que a sociedade civil organizada pode exercer em processos de desenvolvimento urbano local. Presentes como movimento cívico dotado de competência técnica, a Bâtir Son Quartier gerou tensão e sinergia, induzindo o poder público a boas práticas, moderando a dimensão predatória das forças de mercado e colocando na mesa os interesses concretos da população local. 

Philip Yang
Philip Yang é fundador do Instituto Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole), centro que busca promover projetos de impacto urbano e de busca de cidades melhores, voltados ao poder público, setor privado e sociedade civil. É mestre em Administração Pública pela J.F. Kennedy School of Government, Harvard University. Serviu como diplomata de carreira do serviço exterior brasileiro entre 1992 e 2002. É formado em Música na Academia Superior de Música Franz Liszt (Budapeste). Foi membro dos conselhos de cidades em São Paulo e Rio de Janeiro e atua como membro de conselhos em diversas instituições voltadas ao debate sobre arquitetura e urbanismo no Brasil.