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Cartas da pandemia: a partida a Vannes

Vannes, 18 de março de 2020

Bom dia mãe, pai, loira, nina, vovó e josi

Espero que estejam bem.

Hoje é o segundo dia de confinamento. 

Anteontem deixei Nantes, a cidade grande. A decisão foi tomada no pulo. 2a feira de manhã, um email da central de residências estudantis nos encorajava a deixar nosso apartamento e voltar para casa. Rapidamente descartei a ideia de voltar pro Brasil. Não posso nem imaginar o perigo de pegar múltiplos vôos cheios e trazer o virus até vocês. Às 20h ouvi o discurso do Macron. Fala-se sobre isolamento mínimo de 2 semanas. Pelos nossos vizinhos italianos sabemos que pode ser mais.

Foi quando decidi deixar o apartamento. Passar semanas rodando nos 18 m2 e alternar entre a cama, a escrivaninha e o banheiro completamente sozinha nesse pais estrangeiro não parecia promissor para a saude mental. Liguei para o Guillaume e ele trouxe sacolas vazias.  Esvaziamos tudo. Roupas, utensílios, maquetes de projeto foram enfiados em malas e sacolas. É incrível como a gente acumula pertences em 1 ano e meio. As paredes cobertas com fotos, desenhos e cartas de vocês foram esvaziadas. Eu também. Foi como despedaçar meu ninho, e deixar meu porto seguro. Meu barco partiu pro alto mar no inicio da tempestade. Ninguém sabe quanto tempo vai durar. É possível que tudo volte ao normal. Mas em quanto tempo?

Estar nos espaços comuns do prédio é como entrar num filme de terror : não há vivalma em lugar nenhum. E torcemos para não cruzar ninguém. Qualquer pessoa é um potencial portador do virus. Desconfiamos até as pessoas próximas de nós. Só de entrar no elevador, ficava imaginando aquelas manchas de marca texto verde onde pode ter o virus. Nem pensar em por o dedo direto no botão do térreo. Usei um pedaço da caixa de papelão de joguei fora.

Ainda não cancelei as contas de luz e água para não ficar sem endereço (precisamos do comprovante de endereço para circular). Mas os gerente do prédio confirmou que nenhum outro estudante vai ocupar esse apartamento por algum tempo… Saí do prédio no escuro e poucas eram as janelas acesas.

As aulas continuam, teoricamente. Poucos professores entraram em contato para nos orientar (acho que eles tem outras preocupações nesse momento). É difícil encontrar motivação para continuar os projetos sem projeção do futuro. Vamos entregá-los um dia? Vou conseguir terminá-los se ficar doente? Vamos concluir o semestre? Faço os poucos trabalhos para ocupar a cabeça. Mais do que nunca, estou feliz de estar estudando que eu gosto, projeto como se estivesse brincando.

Viemos para Vannes para ficar em quarentena com a mãe do Guillaume. Aqui tem um jardim, e tenho menos a impressão de estar enclausurada. Fiz a lição de casa de inglês e fomos dar uma volta à pé. Evidentemente, levamos no bolso nossos documentos e a declaração de que saímos para uma caminhada “breve, individual e nas proximidades da residência”. Esportes náuticos estão proibidos — terei que esperar para poder navegar de novo.

Faz um lindo dia de sol e as ruas estão vazias. Andamos até a praia. As avenidas estão silenciosas sem os carros. Podemos andar a pé no meio das ruas. Cruzamos poucas pessoas, sempre com muita apreensão. Nos dizíamos “bonjour” de longe, e mantínhamos 1 metro de distancia, pelo menos. As pessoas aqui estão respeitando as instruções – espero que no sul da França também, onde eles são mais “rebeldes”, como dizem.

O trabalho do Guillaume desacelerou. Muitos estaleiros pararam, outros vão parar em breve. Os funcionários não querem mais pegar transportes em comum, com razão. Repensamos nossas profissões. É possível que, daqui para frente, muitas pessoas e empresas repensem suas necessidades primeiras. 

Parece que estamos vivendo o colapso da hiperconexão, do overturismo, da megadependência do trabalho, do superimediatismo. Se tempo é dinheiro, nos nunca estivemos tão ricos. Muitos estão fechados em suas casas, fazendo trabalhos sem datas de entrega, assistindo vídeos e TV, ligando para seus parentes e jogando jogos de tabuleiro. Os profissionais da medicina estão no front, combatendo um virus que traz cada vez mais civis ao campo de guerra. Eu nunca imaginei que viveria isso. Sexta feira eu fui para aula e saí com meus amigos para comemorar um aniversario. Sexta feira parece ter sido anos atrás.

O vírus não vê fronteiras nem diferenças sociais. Não ha porque ter pânico ou paralisia – eles só atrapalham e não resolvem o problema. É hora de por os pés no chão – de preferencia, cada um no seu quadrado. Temos que estar bem para cuidar de si e do outro. Penso naqueles que não tem um lugar para morar, naqueles com saúde frágil, naqueles que não tem reservas financeiras ou que ficarão sem trabalho. Penso em vocês, em casa, lendo essa mensagem e vendo notícias de um presidente incapaz de governar. Torço para que a população ouça os alertas dos países que viveram isso antes. É uma onda que vai passar, alguns estão sobre barcos, outros em pranchas de surf, outros estão a nado e terão que mergulhar. Lembrem de si e daqueles de quem dependemos e que dependem de nós. Objetos, dinheiro, promessas valem menos do que vidas salvas. Façamos tudo para receber essa onda com sensatez, e para que ela passe sem deixar rastros.

Tenham certeza de que eu estou bem.

Amo vocês e penso em vocês todo o tempo.

Que o juízo caia como um raio na cabeça desse presidente. Ou que o Brasil tome atitudes assertivas apesar dele.

Tamara

Tamara Klink
Tamara Klink é estudante de arquitetura terrestre e Naval (FAU-USP/ ENSA-Nantes). Apaixonada por navegação e relatos de viagem, ela vive atualmente na França e é possível viajar no seu diário pelo seu canal no YouTube.